Estou. Cheguei, pois… finalmente. Precisei dar a volta ao mundo para chegar à beira do mesmo rio Tejo de onde partiram meus antepassados, os Nascimento – do lado de minha mãe, justamente aquele ao qual atribuo meu sangue literário, tão profundamente explicitado no amor de minha avó Lélia pelos livros que lia à luz de velas, escondida de seu pai. E foi daqui de Lisboa também que partiram os Gomes, e os Campista, e os Santos. Foi, portanto a origem de minha bisavó Hilda, que viveu do fim dos 1800 ao começo dos 2000, e de um parente distante que, se não me engano, era meu tataravô, o milionário comendador Antônio Valentim, dono de um pequeno castelo no bairro de Santa Teresa, no Rio onde eu nasci.

Dei a volta ao mundo. Experimentei a energia vibrante de Nova York. O contagiante espírito empreendedor do Vale do Silício, na Califórnia. Voltei a me maravilhar com Nova York. Redescobri e aprendi a amar São Paulo como se fosse minha. Parti para um mundo onde tudo é antigo, a Jerusalém do Jesus de meus livros, onde ainda pude imaginar seu sangue sobre as pedras milenares, e o sangue de tantos mártires cristãos, judeus e muçulmanos, a terra de Cristo, o livro que  estou agora terminando de escrever.

Uma ameaça de morte me fez sair às pressas do Oriente Médio. Aterrorizado, finquei meus pés ainda bambos na Berlim onde o século XX se inventou e desinventou. Experimentei, depois, os prazeres de ser francês por quase três anos. Molhei meus pés nos pântanos inférteis da Flórida e, bem, depois de tudo isso… Estou.

Cheguei a Lisboa no dia em que completei 46 anos.

Segunda-feira, 8 de junho de 2020. Assim está impresso na minha memória. Descobri agora que foi também o dia em que saí da faixa etária dos adultos maduros (36 a 45 anos) e passei para a dos mais crescidos (46 a 65). O meu segundo tempo, portanto, a segunda vida que resolvi me dar ao deixar 23 anos de uma carreira estável como repórter e correspondente internacional naquela que orgulhosamente dizíamos ser uma das maiores emissoras de tevê do mundo, começa aqui na terra dos meus antepassados, o lado literário de minha família, o lado de minha mãe.

Estou, portanto, aprendendo e ser um pouco mais do que sempre fui.

Aprecio cada pedra que piso (são as pedrinhas portuguesas de Copacabana), pensando no quanto essas pedras de Lisboa fazem parte de minha história, e admiro a perfeição linguística com um sotaque que acho charmoso, sinto-me em casa vendo os telhadinhos de argila, entrando nas livrarias que brotam em esquinas, nos restaurantes familiares, nos bares e nos botecos que, me parece (ao menos os nossos), nasceram aqui.

E enquanto me reconheço, me reinvento. Aprendo a ser Outro Eu, como o personagem Jeff da ficção que escrevo à noite, em madrugadas de insônias “fusoráricas”. Jeff é o jovem que, depois de implantar uma membrana inteligente em seu cérebro, partirá dos Estados Unidos para as terras de seus antepassados, numa viagem em busca de autoconhecimento que, agora vejo, se parece com a minha.

O mundo que conheci nesses muitos países em que vivi é sempre imperfeito. O mundo é como nós: precisa seguir imperfeito para continuar se aperfeiçoando. Não há cidade irretocável, nem mesmo Manhattan; nem mesmo Paris; Berlim, certamente, não é para mim. Mas há lugares em que nos sentimos imperfeitamente bem.

Se por algum tempo o meu bem-estar esteve na descoberta, agora (talvez por ter entrado nessa outra faixa etária), o meu outro eu encontra seu bem-estar numa terra que cheira à casa da avó e fala a minha língua, a língua de Pessoa e, para um escritor de minha geração, mais que tudo, a língua de Saramago.

Caros leitores, escrevo-lhes hoje apenas para dizer isso: estou.