Ao fim de mais uma sexta-feira extraordinária em que estamos reclusos ansiando por dias melhores, quando pessoas próximas ou desconhecidas têm suas existências violentamente ameaçadas pelo coronavírus, quando sentimos que um certo apocalipse apresentou-se diante de nós, convido você, leitora ou leitor, a reviver comigo uma sexta-feira que jamais será esquecida, quando uma parte da humanidade também temia o pior e esperava pela chegada do Salvator Mundi.

Trecho inédito dos manuscritos de Cristo, meu próximo livro:

“No silêncio da noite em que se inicia o shabat, quando a primeira estrela aparece no céu e a ausência de almas vivas nas ruas entrega Jerusalém aos espíritos, os judeus não estão fazendo outra coisa além de repartir o pão, compartilhar o vinho e orar em família. Respeitam o descanso que lhes é exigido por Deus assim como normalmente respeitam a ordem de não comer porco, e não desejar a mulher do vizinho. E que ninguém finja que não se lembra do que a Lei diz com absoluta clareza: depois que o sol da sexta-feira se apaga, nenhum morto deve ser enterrado.

Podemos ouvir os discípulos se perguntando, e perguntando aos ventos: o que faremos com o corpo do mestre que nos espera no alto da cruz?

Aliás, atentos que estamos ainda podemos ouvir o que disseram ter sido suas últimas palavras, uma pergunta aflita ecoando pelas montanhas.

El-i, El-i, lama sabachtáni?

Meu Deus, por que o Senhor me abandonou?

E, se foram exatamente assim suas palavras, é de se perguntar se o filho não conhecia previamente os planos do Pai. Se sofre agora com o abandono, é porque não está certo de que renascerá? Ou será que dor é dor até para os iluminados?

Sem que ninguém ainda possa afirmar se seu destino será um túmulo escuro ou a fúria faminta dos corvos, o mestre judeu que os romanos condenaram como agitador e revolucionário segue preso pelas mãos e pregado, ou amarrado, também pelos pés. De certa forma, é a história da humanidade que está dependurada ali em cima, com sangue a lhe escorrer da testa ao umbigo, dos joelhos aos calcanhares, e a respingar na areia do chão, sem que se possa afirmar nesse instante o que se saberá muito em breve: depois que Jesus fechar os olhos, a vida sobre este planeta redondo nunca mais será como antes.

Mas, afinal, ele ainda está consciente? Mesmo depois de tanto sofrer? Ou a dor o abateu de tal forma, e o sangue lhe escapou em tamanha quantidade, que não lhe restam forças? Terá tido uma experiência de quase-morte revendo flashes de sua vida inteira?

O que nos parece indiscutível é que, mesmo que por alguns instantes, Jesus está morto.

Foram, inclusive, soldados romanos enfiar-lhe uma lança abaixo do tórax – o equivalente romano a um atestado de óbito. E se ninguém mais duvida de que seu coração parou de bater, será razoável então pensar que desceu ao inferno para cumprir sua missão divina?

Passadas algumas décadas, alguns dos primeiros cristãos que refletirem sobre esse momento dirão que o Cristo está descendo às profundezas, indo aonde a Terra arde em chamas, lá onde o Lúcifer está a lhe falar qualquer coisa sedutora que jamais chegará até nós. Muitos de seus seguidores acreditarão que a alma do Salvador terá viajado ao inferno para de um só golpe resgatar as almas todas que o terrível diabo viera coletando ao longo dos milênios em que a humanidade foi brotando do barro e ao barro voltando.

E isso irá chocar-se completamente com a noção antiga de que “quem desce à sepultura não volta jamais”. A sepultura é o inferno, a terra do desconhecido, do silêncio e das sombras, onde nem mesmo Deus aparece.

Se não tiver descido à sepultura, ou à mansão dos mortos que imaginamos num lugar profundo onde a Terra arde em chamas, ou se já tiver dado por cumprida sua missão ingrata com o diabo, Jesus Cristo pode estar, imaginamos que sim, sobrevoando serenamente Jerusalém.

Talvez agora paire pelo interior do templo que lhe foi negado em seus últimos dias. Pois é lá que está a Arca onde, desde os tempos em que caminhavam pelos desertos, antes mesmo de obterem consentimento divino para ocupar a terra dos cananeus, os judeus acreditam que Deus, o único deus, está hospedado. E Jesus, um judeu acusado de desafiar de uma só vez a lei de seu povo e a lei dos romanos que os escravizam, está agora livre de seus algozes (pois parece estar livre também de seu corpo) e finalmente tem paz para refletir sobre os acontecimentos.

O Senhor me abandonou para morrer como qualquer outro ou para ressuscitar e salvar as almas boas? Podemos imaginá-lo perguntando-se coisas assim, enquanto paira pela cidade corrompida que sempre evitou, aonde só foi para ser preso e executado.

Mas por que razão Deus não terá desejado poupar Jesus do sacrifício, se assim o fez com Isaac no dia em que Abraão esteve a ponto de matá-lo no monte Moriá? Se o patriarca pôde trocar seu filho por um carneiro expiatório, por que será que, séculos mais tarde, o Messias teve que sangrar como se fosse ele próprio um cordeiro de sacrifício?

Dois pesos, duas medidas?

Provação?

Ou o plano de Deus era sacrificar o próprio filho para tirar o pecado do mundo?

Quando escrever seu evangelho, Mateus dirá que, depois de reclamar do abandono, Jesus terá deixado seu espírito partir, provocando um grande terremoto e uma situação ainda mais apavorante: túmulos abrindo-se sozinhos. É recomendável fecharmos os olhos agora para imaginarmos a cena aterrorizante, pois nos dirão que os corpos de santos homens falecidos saíram de suas covas e voltaram a viver.

Mas depois que a sexta-feira adormeceu e os santos zumbis foram outra vez repousar em seus túmulos, os discípulos começaram a se movimentar e colocar em prática seus próprios planos para o futuro de Jesus.

Detratores dirão que, durante este longo silêncio, alguns seguidores estão rindo da ignorância dos romanos, pois o corpo do mestre terá sido trocado pelo de alguém cuja vida não tinha tanto valor. Outros dirão que Jesus foi sedado com uma espécie de fórmula mágica e que todo o seu torpor não terá passado de uma grande simulação engana-romanos, pois ele agora estaria tranquilamente descendo da cruz para seguir vivendo entre nós como um simples mortal.

Aliás, dirão também que se casou com Madalena.

Não terão provas, mas assim mesmo o dirão.

Muito se dirá sem qualquer prova.

E muito esforço se fará para desafiar a versão que prevalecerá entre os seguidores do mestre de Nazaré, essa que vemos agora: depois que o rico José de Arimateia negociou com Herodes, seu corpo foi retirado da cruz e recebeu os óleos e perfumes que um bom judeu sempre mereceu, e assim foi guardado num túmulo.

Ao fecharem a entrada da gruta e saírem do belo jardim, muitos de seus seguidores pensaram que a história havia terminado, pois, ainda que pudessem ter Tiago ou Pedro a guiá-los (e Saulo a querer matá-los), a caminhada jamais seria como antes.

Mas não é esse o fim que os espera.

Ao término da história humana é que a história divina começa. Ou, dizendo-o de maneira muito mais simples: com a morte de Jesus é que nasce o Cristo.”


Comments

Uma resposta para “Salvator Mundi”

  1. Extraordinária e intrigante a reflexão do escritor Rodrigo Alvarez! Mais um livro altamente aguardado de sua sensibilidade e erudição.
    Vale a pena colecionar as obras desse autor tão grandioso quanto empático às nossas dores, questionamentos e esperanças. Excelente leitura. Recomendo a todos, e agora, On Demand pela BuoBooks!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *