Os caranguejos estão à vontade. Ocupam seu espaço como se nunca tivesse havido humanos a importuná-los. É nessa hora, quase ao pôr-do-sol, que eu coloco meus pés na água morna do Golfo do México. Um caranguejo que me parece pré-histórico sai apressado rumo ao fundo, enterra-se no buraco onde deve ter ficado escondido nesses últimos séculos até que, por acaso, descobriu a praia vazia.
Em algumas partes da Flórida, por decisão política, as praias voltaram a se abrir. Muitas coisas se abriram. As famílias em geral respeitam os cartazes que dizem: Regra da praia, 2 metros de distância. A alegria é evidente e o som da música de meu vizinho, estridente.
Saindo da praia, o engarrafamento também está de volta. Acho bom ver os carros, de novo, aos esbarros.
E os policiais, mais zelosos que antes, dizendo: “Isso não pode, mais devagar, vá por ali!”
O Frenchy’s Rockaway Grill é um daqueles restaurantes de rede com comida frita e coquetéis enlatados que normalmente me fazem perder a fome. Agora quero entrar, quero ver o que há. Sim, o Frenchy’s está legalmente aberto e legalmente com menos da metade das mesas.
Legal!
Legal…
Legal mesmo?
Na fila, casais com chopinhos na mão e um distanciamento ilusório.
Famílias próximas umas das outras, ainda que muitas com máscaras, esperam eufóricas o chamado da recepcionista. Entendo perfeitamente a razão de suas alegrias, claro que sim. Foram dois meses de confinamento! Aliás, compartilho dessa alegria com um sorriso no rosto. Mas não salto do carro.
Sigo lentamente pelo engarrafamento, que ao primeiro semáforo se dissipa.
E já estou quase chegando ao supermercado quando vejo mais um restaurante aberto.
O Tampa Bay Brewing Company é uma cervejaria que tem boa pizza para os padrões de um subúrbio americano (não tem nada a ver com a pizza de São Paulo, posso garantir).
Estaciono.
A fila é sanitariamente correta: pequenos grupos se espalham pelo estacionamento à espera de uma mesa vaga. Tem até um casal com a mala do carro aberta comendo ali mesmo, com cadeirinhas de acampamento. Certos, eles!
Os garçons estão todos de máscaras e com potes de álcool, sempre limpando as mesas. Recuperaram seus empregos temporários e exibem sorrisos que só vejo porque seus olhos também sorriem. As mesas ficaram tão espalhadas que foi preciso usar uma parte do estacionamento. Consigo uma. Peço peixe empanado com fritas (prefiro a memória da pizza paulista). Me parece o máximo da alta gastronomia. É liberdade, afinal, ainda que pareça tardia.
Passo bons momentos vendo esse movimento ao qual me reacostumo facilmente, mas não deixo de me perguntar se estou fazendo a coisa certa. Será que limparam direito os braços da cadeira em que me sento? Lavaram bem esses copos?
Estou infectado pelo vírus da saudade, mas agora começo a temer uma infeção de verdade. Não há dúvida de que me expus mais nesses últimos minutos do que em toda a pandemia. Peço a conta meio depressa e deixo uma gorjeta incomum. Quero recompensar o garçom pelo serviço e pelo risco que ele correu para me atender.
Entro no carro pensando que ainda é cedo, que não há urgência que substitua a prudência. Por mais que tenha me entregue ao desejo, estou perfeitamente ciente de que o atual governo dos Estados Unidos não serve de parâmetro para coisa alguma, e não só agora. Agiu mal, muito mal desde antes da pandemia. O presidente Donald Trump assumiu riscos e administrou terrivelmente a resposta americana. Como disse Barack Obama, Trump adotou a política do “não tenho nada com isso”. Pior do que isso, é como se dissesse o tempo todo “danem-se os outros!”.
Ao menos dois assessores próximos de Trump estão contaminados. A pandemia chegou à Casa Branca e dessa vez o inimigo é mais poderoso que qualquer tentativa de falsificar a verdade. A América está baixando a guarda sanitária em nome da recuperação econômica. Arrisca-se, a América.
Errei neste fim de semana ao ceder à tentação. O diabo atenta mesmo e nem sempre é fácil enxergá-lo.
Dormi e acordei com a certeza de que aqui nos Estados Unidos, e certamente também no Brasil, não chegou a hora de relaxar. Somando os dois países, são cerca de 100 mil pessoas mortas. Não são idiotas os jornalistas que se preocupam com nossos doentes e criticam a ideia infantil de um churrasco presidencial com futebol de ministros. Nem foi fake news coisa nenhuma. Aliás, Bolsonaro, se tivesse sido, seria ainda pior. Para ironia inconsequente nunca haverá boa hora.
Faço como os caranguejos.
Assusto-me com os estranhos humanos que nos governam, caminho de lado e digo vade retro à tentação.
Resguardo-me outra vez nas profundezas do meu confinamento à espera do momento certo de voltar à superfície.