“Existe a verdade e a não-verdade”, escreveu Winston Smith, funcionário do Ministério da Verdade da Pista de Pouso Número 1, em seu diário secreto. Seu trabalho era reescrever artigos de jornais do passado, sempre em apoio à ideologia do seu partido. Por isso, Winston sabia muito bem como eram construídas as falácias: a informação correta era acompanhada já pelas alterações a serem feitas.
Essa é uma das cenas de 1984, obra-prima do escritor George Orwell, mas poderia ser um relato dos dias de hoje. A disputa pela verdade também é uma temática do século XXI, mais exatamente por meio do conceito de pós-verdade, no qual os fatos objetivos têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais. Mas esse não é o único assunto abordado pela literatura de Orwell que se conecta com questões atuais.
“Uma sociedade alimentada por uma ditadura, onde há espiões por toda parte, desaparecimentos e execuções. Mesmo que seus dois livros tenham sido escritos claramente para criticar o governo de Stalin, Orwell sabia que no fundo estava criando algo capaz de vencer o tempo”, destaca a jornalista e booktuber Fernanda Farina. De fato, qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.
Autoritarismo, igualdade, justiça social e repressão são temas explorados também em livros brasileiros mais recentes, como Ditadura e democracia no Brasil, de Daniel Aarão Reis, Relações raciais e desigualdade no Brasil, de Gevanilda Santos, O estatuto da igualdade racial, de Sidney de Paula Oliveira, e História natural da ditadura, de Teixeira Coelho. Afinal, são questões que permanecem em aberto.
Um dos grandes diferenciais de George Orwell é a sua vasta experiência prática naquilo que abordava, o que lhe conferia a melhor legitimidade para trazer reflexões sobre os objetos de sua obra. “Trabalhou em um sem fim de lugares fazendo as coisas mais diferentes que você pode imaginar. Através de todas essas experiências ele tentava entender melhor a sociedade que o cercava.
Orwell atuou ainda como professor, vendedor de livros em sebo e como jornalista, atividade que ele exerceu ao longo de toda a vida. Ele viveu com mendigos e moradores de rua nas cidades de Londres e Paris. Passou fome, passou frio e viu a pobreza de frente”, complementa Fernanda Farina. A criação literária a partir de vivências práticas fez do escritor britânico um dos mais conhecidos.
O autor britânico ganhou notoriedade justamente pela sua capacidade de provocar reflexões sobre a realidade com uma pegada artística. “Seu texto é objetivo, cristalino e sem firulas. Ele se preocupava muito com a estética literária, pois seu objetivo era transformar a crítica política em arte. Ele não queria fazer meramente um panfleto. Ele queria fazer literatura”, ressalta a jornalista.
Assim, George Orwell entrou para um seleto time de autores que abraçaram o jornalismo em suas criações literárias. Eduardo Galeano, Svetlana Alexiévitch, Gaston Léroux, Clarice Lispector, Gabriel García Márquez, Eliane Brum e José Eduardo Agualusa são apenas alguns deles. Além de excelentes escritores, vão a campo, fogem do lugar comum e vivem o presente com a coragem de poucos. Não por acaso, suas obras mudaram o imaginário social.
“É por isso que as obras de George Orwell parecem renascer constantemente: elas são frescas e ainda muito críticas, nos convidando à reflexão e ao não-conformismo. Orwell não passa a mão na cabeça de ninguém. Pelo contrário, ele mostra que cada um de nós tem responsabilidade na engrenagem social, e que mudar é uma questão de escolha, de luta e participação”.
Buobooks indica:
A revolução dos bichos (edição luxo) – George Orwell
A revolução dos bichos – George Orwell