Neste momento em que se celebra a liberdade de amar – quando gays, lésbicas, transexuais, transgêneros e travestis demonstram o quanto são orgulhosos de ser como são – vou tratar de um tema delicado, que envolve fé e religião, mas que nem por isso deve ficar trancado numa gaveta proibida junto a outros dogmas e tabus.
Proponho falarmos desse assunto com franqueza pois, se não falarmos, outros virão defender a opressão, a discriminação e, pior ainda, a marginalização de gays e lésbicas como se fossem, à moda antiga de se dizer, abominações. E o farão, muitas vezes, para expressar seus preconceitos aproveitando-se da religião, ou de uma leitura equivocada de textos religiosos, para penalizar as pessoas que se identificam com uma das letras da cada vez mais extensa comunidade LGBTQI+.
Frequentemente, setores da sociedade brasileira dita conservadora, assim como correntes conservadoras de outros países, baseiam suas condenações aos homossexuais, e suas homofobias, nos ensinamentos do apóstolo Paulo.
Por que isso é um erro grave?
Por que penso que devemos parar de ouvir Paulo sobre certos assuntos?
Eu não seguiria repetindo as palavras de Paulo quando ele fala sobre os homossexuais. E não o faria, antes de tudo, porque os ensinamentos do apóstolo dos gentios levariam muitas pessoas incríveis a serem apedrejadas em praça pública. A interpretação dos primeiros cristãos, e de muitos de seus sucessores, foi de que no primeiro capítulo de sua Carta aos Romanos é dos homossexuais que Paulo fala quando afirma serem merecedores da morte. Não foi por acaso que, como base em Romanos 1:32, o imperador bizantino Justiniano determinou a pena de morte aos homossexuais.
Seguindo-se literalmente a moral pregada por Paulo e convertida em lei por Justiniano, teria sido condenado à pena de morte, alguns anos atrás, o cantor Freddie Mercury. Não teria sido estranha também a hipotética execução sumária de Lady Gaga, bissexual assumida, talvez esquartejada numa praça de Nova York.
Em sua Carta aos Coríntios, o apóstolo dos gentios afirmou que um homossexual jamais seria recebido no reino de Deus e que, portanto, deveria ser expulso da igreja. Seriam expulsos, também, o artista plástico Andy Warhol e o cineasta Pedro Almodóvar, junto de alguns milhares de gênios cristãos, deixando enormes lacunas no mundo das artes. Eu não tenho como apoiar nada disso.
Para entender o contexto, é preciso lembrar que, antes de ter sua visão de Cristo na estrada para Damasco, Paulo era um extremista religioso judeu, um fariseu que perseguia os seguidores do mestre nazareno. E ainda que depois tenha defendido que a Lei Judaica não precisava mais ser seguida, abolindo, por exemplo, a circuncisão, Paulo continuou pensando, em muitos aspectos, como judeu.
De acordo com o judaísmo ensinado pelas escrituras do chamado Antigo Testamento, a homossexualidade era abominável, e, portanto, aqueles que fizessem sexo com pessoas do mesmo sexo deveriam ser mortos, e ter seu sangue derramado sobre eles. Isso está dito com todas as letras no Levítico, um livro escrito por homens, milênios antes do nascimento de Jesus. De acordo com a velha lei, o engraçadíssimo Paulo Gustavo não poderia filmar Minha Mãe é uma Peça 4 pois teria sido degolado, sendo público e notório que ele se sente atraído por homens.
Devemos então descartar as cartas de Paulo para salvar a pele de Paulo Gustavo?
Não é preciso radicalizar, nunca! Basta reler essas cartas com novos olhos. Podemos ler Paulo sabendo que ele nos escreve de um outro tempo e entendendo o que há ali de verdadeiramente filosófico e religioso. Suas sete cartas autênticas são livros canônicos formadores do pensamento cristão, além de terem enorme valor histórico. Cabe, talvez, aos filósofos cristãos da atualidade, definir o que permanece e o que é datado nas cartas de Paulo.
Não parece razoável, certamente, o método usado pelos conservadores radicais, que selecionam nas cartas de Paulo os trechos que podem usar como argumento em favor de suas visões homofóbicas, ao mesmo tempo em que ignoram outros ensinamentos das mesmas cartas quando esses não lhes são convenientes.
Entram na discussão os famosos valores da família cristã.
Se está entendido que, por causa das cartas de Paulo, a família cristã não aceitará Paulo Gustavo, será preciso concluir, antes disso, que por causa das mesmas cartas do apóstolo dos gentios a família cristã nem deveria existir.
Para que fique bem claro antes que alguém me atire tomates podres: Paulo jamais defendeu o casamento e nunca viu a família como algo importante. E se fosse para levarmos de maneira fundamentalista tudo o que Paulo escreveu, teríamos que considerar também que a mulher é inferior ao homem.
Está nas cartas: o homem é a imagem e glória de Deus, mas a mulher é a glória de um homem. O apóstolo dos gentios sugeriu inclusive que se alguém pensa em comportar-se indecorosamente para com sua noiva virgem – no caso de ela já ter passado da flor da juventude – assim deve acontecer: faça-se o que ele quiser.
Na moral de Paulo, portanto, a mulher não é nada além de uma propriedade do homem. Assim sendo, Gisele Bundchen deveria ser propriedade de Tom Brady, e ele, feito à imagem de Deus, deveria ter direitos sobre ela.
Estamos prontos para retroceder nas conquistas do século XX?
Se fôssemos ler as cartas de Paulo como lei perpétua e imutável, deveríamos acreditar piamente que o casamento não serve para nada. A família? Isso não é importante. E por quê? Porque quem acredita na vinda do messias para salvar Israel acredita também que o mundo irá acabar em pouquíssimo tempo. Para que perder tempo com casamento e filhos se o mundo vai acabar?
Paulo pregava que o apocalipse chegaria ainda enquanto ele e seus discípulos estivessem vivos, e que, por isso, o melhor a fazer era permanecer solteiro. Ele defendia também que era melhor ser virgem do que manter relações sexuais, pois tudo isso desviaria o cristão da única coisa que realmente importava: sua dedicação a Deus. Se a moral de Paulo fosse levada ao extremo, como conservadores desejam, poderíamos ser todos virgens e o mandamento primordial do Genesis, cresçam e multipliquem-se, deveria ser esquecido. A Terra ficaria vazia: adeus Felipes Netos, adeus Anittas, adeus humanos.
A moral de Paulo não era unanimidade nem em sua época. Se fôssemos a Roma, a capital do império, veríamos como tudo era diferente sobre casamento, virgindade e homossexualidade, e certamente a moral do judaísmo ortodoxo não se aplicaria aos gregos cultos daquele tempo. Foi em parte por causa de Paulo, e muito também pelo conhecido ciúme do grande apóstolo Pedro, que as mulheres deixaram de ocupar lugares importantes na hierarquia cristã. Maria Madalena, por exemplo, precisou esperar quase 2 mil anos para ser reconhecida como apóstola.
Na Igreja Católica, faz algum tempo que as mulheres vêm subindo degraus, mas elas ainda não viraram sacerdotisas, nem bispas nem cardealas (se é que se diria assim). Recentemente, o papa Francisco fez questão de deixar claro que os homossexuais são bem-vindos na Igreja que ele está modernizando. Contrariando muitos católicos conservadores, o papa aboliu a regra paulina que dizia que o homossexual deveria ser expulso (a pena de morte foi abolida um pouco antes). Esperamos ainda mais deste belo papa.
Penso que é possível a um cristão, certamente, ver nas cartas de Paulo inúmeros ensinamentos sobre a religião e a mensagem de amor proclamada tão vigorosamente por Jesus Cristo. Mas, se eu falasse a língua dos anjos, jamais me atreveria a usar as cartas de Paulo para justificar a homofobia e muito menos para defender os supostos valores da família cristã. Depois de condenar os homossexuais, o próprio apóstolo dos gentios disse que o pleno cumprimento da lei é o amor. E se entendemos que, de fato, a mensagem principal de Paulo é o amor incondicional, o mesmo que foi ensinado por Jesus, sou obrigado a concluir que devemos, todos, amar Paulo Gustavo.